O filme “O Poço”,
dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia, recentemente lançado pela Netflix, é uma metáfora
fascinante, grotesca e perturbadora. Embora não esteja explícito representa uma
clara crítica à nossa sociedade, sua distribuição de recursos e à falta de
solidariedade dos mais ricos, ao criar um personagem que, por vontade própria,
entra numa prisão para se livrar do vício do cigarro e ganhar um certificado, e
que se vê, de repente, obrigado a lutar pela vida, pois, na prisão, a comida
passa por uma rampa com mais de trezentos níveis, na qual não chega aos níveis
mais baixos, forçando a quem neles vive a lutar pela sobrevivência. É uma
abordagem com elementos ainda mais complexos, porém, com uma permanente tendência
de questionar o mundo atual quando começa, por exemplo, com as fortes palavras;
“Há três tipos de pessoas. As de cima, as de baixo e as que caem”. O que
parecia incompreensível para o protagonista do filme (Goreng), que, como todos os prisioneiros só podia levar um objeto para
a prisão, e levou o livro de Cervantes, Dom Quixote, acaba ficando explícito, quando
compreende que a única coisa que se faz na prisão é esperar por uma rampa com uma
plataforma de comida. Preparada no nível zero, um banquete, consumido, durante algum
tempo, em cada nível, uma vez a cada dia, sem que se possa guardar nada, em que
os de cima não se importam com o que sobra para os debaixo, nem que se alimentem
de seus restos. Quando acorda, Goreng, está no 48, onde ainda se come, mas, os
prisioneiros são, mensalmente, trocados de nível para que passem por todas as
situações. Quando acorda, no nível 147, se vê amarrado, por seu companheiro de
cela, Trimagasi, que, prevendo a falta de comida, passaria a comer parte de seu
corpo. E faria isto, se uma personagem, Miharu, misteriosa e canibal, que se
transporta pela plataforma atrás de sua filha, não o salvasse. É se alimentando
de partes do corpo e das larvas do companheiro que Goreng sobrevive e vai ser
compartilhar cela com Imoguiri, quem o selecionou para a prisão, que, depois se
descobre, ao saber que tinha câncer, foi tentar mudar o sistema por dentro. O
lado idealista dos personagens reaparece, depois, no próprio personagem e em um
negro, Baharat, que topa, primeiro tentar descer e distribuir a comida, depois
fazer com que uma mensagem chegue ao nível zero. É um filme onde várias metáforas
se entrelaçam numa grande metáfora. O fato de Baharat querer subir, dependendo
da bondade de estranhos, sem sucesso, mesmo apelando para a religião, ou a
alusão que se pode fazer os de baixo cooperar pela força, bem como a menção
explícita de que “nenhuma mudança é espontânea” não conseguem superar a de que,
por mais educados, bem intencionados e delicados que possamos ser, nas
situações limites, nos comportamos como qualquer animal, ou seja, o que vale é
sobreviver. Embora deixe visível, o que é uma verdade, que há alimentos e
recursos para todos, se os poderosos tivessem solidariedade, também deixa
entrever que a mudança só pode ser feita pela educação. Como é um filme que
visa questionar valores também não são propostas soluções, daí, o final tão ambíguo.
A salvação da criança, no nível 333, é realidade? Uma das regras da prisão era
de não se ter menores e, alguns personagens, colocam em xeque a existência da
filha de Miharu. Ainda que seja. Isto mudaria de fato alguma coisa? Quando se
vê o chefe indo à loucura, no fim do filme, por um cabelo na panacota, é de
cabível perguntar se, para muitos, tem importância o que se passa nos níveis
inferiores, desde que não altere sua vida. Algo semelhante não se passa, por
exemplo, agora, quando se pede para os outros ficar em casa, quando esses não
tem o que comer? Há uma quantidade muito grande de pessoas que fazem belos
discursos socialistas comendo caviar e bebendo champanhe, mas, quantos se
moveram para alimentar alguém na atual crise do coronavírus? Os pobres, na sua
grande maioria, não estão discutindo no Facebook ou no Whatsapp sobre Bolsonaro
ou Lula, sobre ficar ou sair. Estão, como os do final do poço, em busca do que
comer hoje ou amanhã. E são poucos, muitos poucos, os que tem o que teve Goreng
no filme, a coragem de se sacrificar pela menina (o amanhã). O filme é cruel. É
preciso ter estomago para assistir, mas, trata de todos nós: da nossa violência,
do que vemos, do que não vemos, dos que desejam o diálogo, dos que não
entendem. Mas, a realidade do poço nos envolve com outras formas. E, é óbvio,
não nos salva nem a literatura, nem o marketing nem a cegueira. Apesar das
nossas melhores intenções o mundo continua a ser injusto. E o poço não tem
fundo.
Ilustração: Observatório do Cinema.
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