ORGANIZANDO A MORTE: NO RITMO DO CANDOMBLÉ, DA CIÊNCIA E DA
MEMÓRIA
(Para
o cantador da vida José Valdir Pereira, um preservador de memórias)
Silvio Persivo
Vou me valer do candomblé,
que nos lembra uma verdade profunda: a
morte não é um fim abrupto, mas uma transição. "Continuidade, não
fim" é a essência que guia a compreensão de Orum, o espaço onde a pessoa
se transforma em ancestral. Nesta visão, a morte é parte de um ciclo vivo, em
que o indivíduo não desaparece, mas ingressa em uma nova função dentro de um
todo que permanece. O guardião Iku, nesta tradição, emerge como a força que
conduz os espíritos. Não é visto como inimigo nem como algo externo ao
equilíbrio natural; é parte do vasto ecossistema espiritual que sustenta a
ordem do cosmos. Esta percepção aproxima a morte da própria vida, em uma dança
contínua que mantém a harmonia entre o que foi e o que será.
Por isto o uso do branco
no luto, associado a Oxalá, simboliza paz, pureza e proteção. É a cor que
acolhe a passagem, marcando o momento de transição com uma energia de
serenidade. Os cantos, rezas, oferendas e a presença coletiva atuam como
bússolas emocionais e espirituais, oferecendo consolo, sentido à perda e
acolhimento aos enlutados. Nessas práticas, o laço entre os vivos e os
falecidos não se rompe; ele se transforma e se expande pela ancestralidade que
nos conecta. A ideia de que laços são
eternos pode soar paradoxal frente ao impulso humano por explicações racionais.
É verdade que, quando nos faltam explicações, criamos lendas, crenças e mitos.
Mesmo assim, muitos de nós, que tentamos ser mais céticos, reconhecemos uma
transformação fundamental na maneira de entender o mundo: Lavoisier nos lembra
que “nada se perde tudo se transforma”. Assim, a memória, a presença dos
ancestrais e a prática espiritual continuam vivas dentro de nós, moldando
escolhas, valores e identidades. Neste sentido, a crença na continuidade não é
apenas consolo; é uma forma de preservação do que nos torna humanos.
Esta visão não nega a
ciência; pelo contrário, a coloca em diálogo com ela. A percepção de que a
consciência pode permanecer de alguma forma, seja na memória coletiva, na
herança de ensinamentos ou na continuidade de rituais, resiste à dissolução
absoluta. Mesmo quando sentimos o peso da ausência, a lembrança, os
ensinamentos e o legado daqueles que partiram permanecem. E é neste sentido que
a ideia de eternidade se aproxima da nossa experiência cotidiana: não como
imutável imortalidade física, mas como uma presença contínua que se reencontra
na prática, no afeto e no compromisso com o bem comum. Em última análise, a
experiência humana de luto e memória se entrelaça com a sabedoria ancestral que
preserva a paz, a dignidade e o sentido da vida. O Candomblé oferece, assim,
não apenas um ritual de despedida, mas um mapa para entender a continuidade: a
morte como passagem, a ancestralidade como presença, e a prática coletiva como
abrigo que nos impede de nos perdermos
no vazio, que a ciência diz que é o nosso fim, ser o que fomos: matéria sem
consciência.
Numa forma simples de
dizer: penso que sim, a continuidade da
vida, em sentido amplo, nos torna eternos. A partir desta percepção, a
“ausência”, com a morte não estarei aqui, não é o fim do ser, mas a passagem para uma
forma de presença que molda quem somos. No entanto, reconheço o peso da mudança-a
percepção de que vou sentir muita falta da consciência que temos do mundo, do
nosso senso do eu e do nosso tempo partilhado com os outros. Isto é a vida e
também a morte. Afinal vivemos morrendo
e acumulando, enquanto possível, memórias.
Ilustração: Issuu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário